sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

O cheiro do éter

Vivi uma infância entorpecida pelo éter em Copacabana, para onde me mudei aos 7 anos, depois de sair da Ilha do Governador. O cheiro espalhava-se pelo Posto 5, no rastro de um grande homem andrajoso freqüentemente visto arrastando-se pela Barata Ribeiro. Ele rondava a famosa - e fechada - farmácia Piauí, quase na esquina de Constante Ramos, mas não sei se comprava o vidrinho do produto ali. Os conservadores moradores usavam aquela figura, se não me engano, chamava-se Eduardo, para afastar os filhos das drogas naqueles anos 70. Diziam ser ele um rico herdeiro que havia enlouquecido por causa de maconha, cocaína e ácido e que, agora, afastado da família abastada, pedia esmolas para comprar éter. Eu o vi várias vezes dando suas cafungadas no paninho embebido do líquido, mas nunca acreditei muito no papo da riqueza dele. Para mim, o mendigo era triste, muito triste, e isso só poderia se explicar por alguma desilusão romântica. Inventei uma história para o homem que por um tempo ocupou o lugar das minhas bonecas nas brincadeiras de desvarios. Ele não seria do bairro, mas teria ido à praia lá e encontrou uma 'cocota', por quem se apaixonou. A moça o esnobava, mas ele não ligava, só queria ficar perto dela. Nunca mais voltou para casa, vivendo da piedade alheia. O tempo passou, ela se casou com outro e mudou de lá. Alucinado de dor, o pobre passou a se anestesiar com éter. Fez voto de silêncio - realmente, nunca ouvi sua voz -, parou de tomar banho e fugiu do lugar-comum chamado realidade. Procurava seu amor contrariado sempre rondando quatro quarteirões. Em vão. Seu pé, inchado como seu fígado, sangrava, assim como seu peito. Um dia, Eduardo chorou muito, e as lágrimas cheiravam a éter. Ele, então, cobriu os olhos e o nariz com seu paninho sujo e ficou agonizando três dias assim. Depois disso, ninguém mais o viu. Eduardo sumiu. Virou folclore para os copacabanenses e marco de tristeza para mim.

Originalmente publicado por Ana Silvia Mineiro em Válvula de Escape

2008-04-27 18:31:29

Um comentário:

  1. Não sumiu não Ana. Cresci em Copacabana e conheci o Eduardo do Éter. Era um homenzarrão que não fazia mal a ninguém. Na verdade uma vez eu vi o gajo dar uma surra num negão que achou que podia tirar piada com ele. A surra aconteceu em frente a uma loja de frutas que ficava na Rua Barata Ribeiro quase esquina com a Santa Clara. Foi interessante ver como o "Éter" sabia se defender muito bem enquanto os dois rolavam por cima das bancadas de bananas e mamões.
    Mas voltando ao sumiço do éter, gostaria de te informar que ele morreu, sim. Sózinho e abandonado, deitado na esquina das Ruas Barata Ribeiro com Constante Ramos, a poucos metros da Farmácia Piauí.
    Foi uma cena muito triste, ver um personagem que povoou meus medos de infância, ali deitado, acho que com uma vela acesa ao lado do corpo, de pernas inchadas, esperando o rabecão.

    ResponderExcluir